À Conversa com... Escritor Mário Cláudio
VP - Qual é o seu projecto actual ou para um futuro próximo?
Mário Cláudio (MC) - Continuo a escrever diariamente. Tenho o projecto de um romance que deve sair lá para Setembro/Outubro, de título "Gémeos", o último volume de uma trilogia que começou com o romance "Ursa Maior" - cada romance tem o nome de uma constelação - o segundo é "Orion" e o terceiro é "Gémeos". É uma longa reflexão sobre o envelhecimento, através da vida de um grande pintor, que eu não digo quem é, porque as pessoas identificam, visto ser uma das grandes figuras da pintura universal, e através dos últimos anos de vida sobre a sua relação com o mundo, com as coisas, designadamente com as gerações mais novas.
VP - Mas esta nova obra e a sua abordagem sobre a terceira idade resulta de uma preocupação sua em esperar um dia lá chegar ou de uma admiração e carinho especial pelos idosos?
MC - Não, o que acontece é o seguinte, cada livro da trilogia debruça-se sobre um grupo particular de pessoas que estão numa situação de desfavor em relação àquilo que é a maioria. O primeiro abordava a questão da delinquência, de sete personagens que estão numa prisão; o segundo abordava um fenómeno histórico: a perseguição aos judeus, eram sete crianças judias que tinham sido mandadas por D. João II para S. Tomé e Príncipe, no fim do séc. XV; e este terceiro tem também sete personagens em torno desta figura do pintor, que é a figura principal, e o problema maior é, de facto, o problema do relacionamento das pessoas de uma certa idade com o mundo e da forma como o mundo também de alguma maneira as marginaliza.
VP - Está em curso um projecto de promoção da leitura em algumas escolas através de figuras públicas. Nem todas são contempladas... Uma excelente causa formativa como esta não deveria ir mais além, sem restrições?
MC - Acho que sim, tudo aquilo que se faça para promover a leitura num país como o nosso que tem uma taxa elevadíssima de aliteracia e também, infelizmente, de analfabetismo. Tudo isso seria importante. Vou começar agora a animar uma comunidade de leitores, através de uma iniciativa do Instituto Português do Livro, em que as pessoas reúnem-se em torno de um tema e que, ao longo de algumas semanas, lêem vários livros relacionados com esse tema, de obras literárias. O tema que eu escolhi é "Amor e transgressão". Há sete obras literárias, de poesia e de prosa, que estão escolhidas para reflectirmos. Não é a primeira comunidade de leitores que se cria, já houve outras no passado, que têm tido um sucesso importante. E o que também é importante é que essas comunidades não sejam só de algumas pessoas já aveludadas para a leitura.
VP - Neste sentido, será que as faculdades também ganhariam com esta iniciativa, dado que consta que muitos universitários mal sabem ler e escrever?
MC - Eu acho que sim, até porque muitas vezes é a própria faculdade, falo inclusivamente das de letras, que mata o gosto pela leitura. A forma como as obras literárias e a literatura são ensinadas a nível das universidades é completamente divorciada de qualquer sensualidade ou emotividade; a literatura é encarada como uma espécie de corpo morto, para realizar operações anatómicas. Muitas vezes não há processo mais rápido e mais eficaz por matar o gosto pela leitura. Há alguns docentes que lêem por obrigação e que não se colocam no ponto de vista do criador, estão apetrechados e utilizam os seus apetreches.
VP - Poderemos, certamente, dizer que a "alma portuguesa" não vem só do fado, mas também da qualidade literária dos nossos escritores da actualidade. Acha que desta fonte continuarão a emanar para o futuro grandes escritores? A geração de hoje está aberta à arte literária?
MC - Aquilo que nós somos culturalmente resulta daquilo que fomos no passado e que estamos a ser no presente, não apenas do ponto de vista literário, mas de tudo aquilo que tem a ver com a criação e com a fenomenologia cultural. Eu acho que, evidentemente, tudo aquilo que formos no momento vai reflectir-se no futuro. Agora, o problema da escrita e da leitura levanta questões muito particulares, que tem a ver com a sobrevivência da própria criatividade, literária designadamente, e a sobrevivência da própria leitura do texto e do livro. Não sabemos o que vai acontecer. Quanto a esses mecanismos que estamos habituados a trabalhar, é provável que no futuro venham a desaparecer e isso não significa que a literatura em si desapareça também. Há outras formas dela vir a sobreviver. Os momentos de transição, como são aqueles que nós estamos a viver, são sempre muito difíceis, particularmente de nós atravessarmos, mas uma vez feita travessia pode ser que outros horizontes se rasguem.
VP - Uma crítica constante que se vê e se ouve é a televisão mostrar exageradamente o que há de negativo e contravalor no mundo. Penso que o outro lado, o positivo ou o arco-íris, se pode encontrar mais rápida e facilmente nos livros. Concorda com esta opinião?
MC - De certa forma concordo e acho que pôs o dedo naquilo que eu considero uma das grandes doenças do nosso tempo: o negativismo. De facto, há um elemento auto-punitivo nesse tipo de comportamentos que apontam só o que está mal, o que está errado, aquilo que é triste ou degradante e que não olha para outros lados. Suponho que às vezes as pessoas são tão doentes, de tal forma enfermas e fechados no seu universo cinzento ou mortal ou apocalíptico, que nem sequer suspeitam que o outro lado existe.
VP - Teremos aqui questão bilateral: umas não vêem porque não lhes é permitido ver, ou seja, certos meios dificultam ou impossibilitam essa visão; outras não vêem porque não querem mesmo ver, não lhe parece?
MC - É uma doença social e também acho que é uma doença das emoções das pessoas que têm um carácter epidérmico. Seria importante que houvesse esforços no sentido de se alterar, mas não vislumbro assim de imediato grandes soluções para isso. Os medos em que vivemos imersos nos tempos que correm são de tal forma avassaladores, de tal forma instantes e permanentes que muitas vezes não nos dão muito espaço para a esperança.
VP - Mas confiamos que a esperança é a última a morrer...
MC - Claro, a esperança é, evidentemente, a última a morrer!
VP - O processo da escrita é tão simples como pegar numa folha e numa caneta e já está? Isto é, escrever um livro ou fazer poesia é para qualquer pessoa? Quais os ingredientes necessários, para além da inspiração e da cultura adquirida?
MC - A questão é esta: toda a gente pode escrever, mas nem toda a gente pode fazer literatura. E, de facto, facilitismo em qualquer uma destas circunstâncias é um valor que deve ser evitado, pois nem leva a parte nenhuma. Só escreve facilmente quem não tem nada para dizer. Quem tem coisas realmente para dizer escreve com extrema dificuldade, mesmo que queira dizer coisas extremamente simples. O acto de escrita é um acto difícil, porque deve ser um acto de grande responsabilidade e de auto-comprometimento. Quem escreve comprometido consigo mesmo, se não fizer isso - e há muito gente que não o faz - está a escrever sobre a água... não fica nada!
VP - Qual o género literário que mais lhe agrada? E a nível de temas ou conceitos tem alguma preferência?
MC - Em relação aos géneros, todos eles são novos, não acredito que haja uma hierarquia de géneros, em que uns são mais novos do que outros. A grande poesia é tão digna de atenção como a grande prosa ou dramaturgia. Todos os géneros têm a sua nobreza. Em relação à temática os grandes temas são aqueles que reflectem o autor deles, a pessoa que lida com eles. Um tema pode ser mínimo, mas vivido literariamente por um determinado autor pode se transformar num tema universal, de importância para todos. Todos os temas que significam a auto-revelação de um autor, com o tal compromisso profundo, ele está a tocar naquilo que é importante.
VP - Esperando que haja novo Prémio Nobel da Literatura em terra lusitana, no seu entender, quem deveria e/ou desejaria que conquistasse tão nobre prémio? E que candidatos vê estarem à altura desse eleito(a)?
MC - Acho que neste momento só há um grande escritor português que devia receber esse prémio, se já devia de resto ter recebido e que espero que ainda venha a receber: António Lobo Antunes. No entanto, há muitos outros que poderiam receber... estou a pensar na Sophia de Mello Breyner, seria a alternativa, se tivesse que haver uma alternativa poesia / prosa. Qualquer um desses seria uma excelente escolha!
VP - E a Agustina Bessa-Luís?
MC - É uma figura muito importante, mas não consigo colocá-la no mesmo plano que os outros.
VP - Quanto à Religião, de que forma vive e sente os valores cristãos a nível da literatura?
MC - O Cristianismo em mim é, antes de mais nada, aquilo que resulta da educação. Depois, foi também uma certa forma conflitual de viver numa determinada altura da minha vida e, finalmente, é uma pátria a que eu regresso, e que já regressei há muito tempo. Considero-me, de facto, um português, um europeu, e como português e europeu não podia deixar de ser cristão!
TRÍMERO TEMÁTICO:
VP - Stresse: bom e/ou mau?
MC - É uma doença, mas também pode ser uma revelação de talento. Tudo o que é doentio está à beira da conversão e a conversão das almas é muito importante, sobretudo quando ela é inspirada por uma fragilidade. As fragilidades, às vezes, estão na raiz de tudo aquilo que é mais forte.
VP - Vírus cibernéticos... até quando?!
MC - Lido mal com eles, como suponho que toda a gente. Devemos preocupar-nos, mas acho que há outros vírus muito mais preocupantes, que são aqueles que estão dentro de nós e que nem imaginamos que eles lá estão.
VP - Nova Evangelização: sempre nova, renovada e inovada?
MC - A nova evangelização deve estar sempre de mãos dadas com a Fé. Não creio que seja possível viver uma experiência evangélica se ela não for iluminada pela Fé. Temo que às vezes se caia excessivamente num pragmatismo, virando as costas para aquilo que é a luz que deve inspirar esse pragmatismo. Primeiro Deus e depois evangelizar!
Aspectos de eleição:
VP - Um livro...
MC - "A guerra e paz", de Leon Tolstoï.
VP - Um poema...
MC - Um grande poema, enorme pela extensão e pela qualidade: "Os Lusíadas", necessariamente.
VP - Um grande escritor morto...
MC - Marcel Proust.
VP - Um grande escritor vivo...
MC - António Lobo Antunes.
Entrevista realizada por
ANDRÉ RUBIM RANGEL
rangel@aeiou.pt